sexta-feira, 26 de abril de 2013


Lendas do Peso: Lenda de Frei João da Cruz

 

    Foi na minha terra, Peso do Minho, que se passou esta lenda. Lenda de amor, em que os protagonistas esbarraram com a incompreensão dos homens. Não está situada no tempo, mas começa como a maioria das lendas, com a frase já gasta pela voz do povo:
   "Há muitos anos...Sim, há muitos anos vivia no Peso um jovem nobre. Chamava-se Mendo de Azevedo, era valente e gostava da aventura. Tendo sofrido um desaire político, passou a Espanha e aí encontrou, certa tarde, numa das belas casas solarengas de Arbo, uma jovem muito bela, muito rica e também muito nobre. Chamava-se a donzela Sol e pertencia à família dos senhores de Yepes. D. Mendo arranjou meio de a ver muitas vezes. Foi fácil conquistar aquela que era para ele já toda a razão da sua existência. Tentou D. Mendo organizar a sua vida em Portugal. O amor fizera dele um outro homem, mais sensato, mais justo, mais crente e mais humano.
   Apesar de ter saído do seu país conseguiu um perdão para voltar à pátria. Porém, o seu desespero foi enorme quando, ao pedir-lhe a mão de sua filha Sol, ouviu da boca do senhor de Yepes um tremendo «não». Desorientado, D. Mendo fez o que nunca fizera: suplicou. Foi, porém, escarnecido e alcunhado de querer caçar fortunas!
   Ferido gravemente no seu amor próprio, D. Mendo encheu-se de coragem e resolveu abandonar para sempre o que fora o seu grande sonho de amor. Para isso conseguiu uma pequena entrevista com a jovem Sol. Ela surgiu-lhe a medo, por entre a folhagem do jardim e quando a Lua começava a pratear toda a avenida dos lilases, ele beijou-lhe a mão gelada.— Querida, será esta a última vez que vos procurarei! Ela levou ao rosto o seu lencinho de rendas. Balbuciou:— Amo-vos, D. Mendo! Serei incapaz de amar outro qualquer!— Mas se vosso pai me insultou, como poderei permanecer aqui sem manchar o meu nome?— Levai-me convosco!— Impossível!— Porquê? Colocais o vosso nome acima da nossa afeição? D. Mendo suspirou.— Minha querida Sol, tentai compreender. Se eu vos raptasse, então sim... então poderiam chamar-me aventureiro ou caçador de fortunas. Eu quero-vos, mas com o consentimento de vosso pai.— Nunca o dará!— Talvez dê.
  — Achais? Como?— Se eu me alistar… se fizer a guerra no estrangeiro... se ganhar fama e fortuna... talvez ele ceda! Sol deixou de chorar.— E se a sorte vos for adversa? Se morrerdes ou ficardes prisioneiro?— Será porque Deus assim o quis! Ela deixou-se atrair ao abraço do bem-amado.— Ide, então... mas voltai breve!... Eu esperarei por vós! E o luar escondeu-se para não ver o beijo que trocaram...D. Mendo de Azevedo cumpriu o que dissera. Seguiu para África a combater os infiéis. Entretanto, o senhor de Yepes formou logo um rápido plano: casar Sol com o filho de um amigo seu, oriundo da Toscana, D. Rodrigo Rocatti y Alvear. Chorou a jovem amargamente. Pediu mil vezes a morte antes que chegasse o dia aprazado para o casamento. Olhava em volta, tentando encontrar um amigo que a ajudasse a cumprir a promessa que fizera a D. Mendo. Tudo em vão. O dia chegou. Implacável. Sem remédio. De índole branda, Sol deixou-se conduzir pelo braço de D. Rodrigo. Ele bem a notara distante. Bem compreendera que não era amado. Aliás, o sogro contara-lhe o «simples episódio» de D. Mendo, agora longe e afastado para sempre. Mas no orgulho de D. Rodrigo sangrava a ferida aberta pela permanente ausência espiritual da que fizera sua mulher. O tempo passou. Talvez três… talvez quatro anos. As coisas não haviam mudado. Apenas Sol se mostrava cada vez mais triste, cada vez mais distante. E um dia chegou ao castelo onde habitavam os senhores de Rocatti y Alvear um cativo resgatado de Orão. Este cativo contou a Sol que estivera com um nobre português, D. Mendo de Azevedo, também cativo. Que esse português lhe falara saudosamente da sua pátria e de uma terra de Espanha onde deixara o seu coração. Sobressaltou-se Sol e quis saber mais desse português. Nunca ela fora tão viva na conversa, no interesse pelos outros... O ex-cativo contou então qual era a vida de D. Mendo remando numa galera mourisca e exposto a todos os escárnios.
  Consumida pelo remorso, pois só por ela D. Mendo partira,Sol perguntou ao ex-cativo se não haveria forma de resgatar D. Mendo. Disse-lhe ele, então, que descobrira o quanto se tinham amado. E sabendo que o seu companheiro não teria forma de arranjar dinheiro para o resgate, viera ele procurá-la para que salvasse D. Mendo. Sol perguntou ainda:
   — Mas… foi ele quem vos mandou?— Oh, não! Ele é demasiado soberbo! Acabará morrendo, porque se impõe, mesmo cativo, e os mouros hão-de matá-lo!— E mais ninguém pensa em resgatá-lo? Ele não tem família em Portugal?— A família está arruinada. Por isso me lembrei de vir procurar-vos. Sol tapou o rosto com as mãos. Suspirou:
  — Oh, meu Deus! Como hei-de arranjar tanto dinheiro?— Eu esperarei. Só voltarei aqui quando me chamardes.— E quem entregará o resgate?— Eu próprio.— Sem que se saiba que fui eu?— Assim o juro!— Nem mesmo a D. Mendo o direis?
  — A ninguém, senhora!— Pois aguardai alguns dias. Tenho muitas jóias e pode ser que consiga a quantia necessária. Depois vos mandarei chamar. E agora, ide! Receio que meu marido vos encontre.Saiu o ex-cativo do castelo dos senhores de Rocatti, para dias depois lá voltar a receber uma enorme quantia em dinheiro, e jóias, e roupas. Porém, quando saiu, foi direito ao dono do castelo, dizendo, triunfante:— Aqui tendes, senhor, do que vossa esposa é capaz!D. Rodrigo empalideceu.— O quê? Pois ela conseguiu... ela ousou entregar-vos tudo isso… para que o libertassem?— Eis a prova, senhor!D. Rodrigo encheu o peito de ar.— Não há dúvida: ela será capaz de tudo! E tendes a certeza que ele foi já resgatado?
  — Sim. Fomos ambos resgatados quase ao mesmo tempo. Um grande de Portugal intercedeu por ele.— E porque viestes aqui dizer-me isso?— Porque o odeio! Ele é um soberbo! Ousou bater-me!— Porquê?— Porque... porque duvidei da lealdade da sua bem-amada!D. Rodrigo atirou ao chão um saco de moedas.— Pois levai isso depressa e desaparecei da minha vista, se não quiserdes acompanhar minha esposa na lição que lhe vou dar!O ex-cativo pegou na bolsa de dinheiro e desapareceu.Só, D. Rodrigo rangeu os dentes de desespero e sibilou com ódio:— Vou matá-la! Vou matá-la! Mas dar-lhe-ei uma morte lenta!Encarcerada no subterrâneo do castelo, Sol esperava calmamente a morte anunciada. Na tarde do seu último dia, pediu ao carcereiro a esmola de um padre para a confessar. Correu o homem a satisfazer o pedido da mulher de seu amo. Foi a um convento próximo, contou o sucedido e pediu um frade. Logo um, entre os outros, pediu humildemente ao superior que o deixasse sair. Foi o padre com o carcereiro. Caminharam silenciosos. Chegados lá, Sol caiu de joelhos, proclamando a sua inocência. Contou o seu amor perdido e a sua fraqueza em ter consentido num casamento sem amor, o seu remorso por saber longe e sofrendo torturas sem nome o único homem que havia amado. Gritou o seu propósito de apenas desejar salvá-lo. Jamais pensara num gesto menos puro. Mas morria sem pena, porque a vida era para ela um fardo demasiadamente pesado.Nem notou Sol como chorava o frade ao dar-lhe a absolvição. Por fim levantou-se. Olhou a dama por uns momentos e não pôde conter-se. Murmurou:— Ambos morremos para o mundo para ressuscitar para Deus! Sol, ouvindo-o assim, encarou-o melhor. Soluçou:— Pois será possível? Será possível? O frade segurou-lhe uma das mãos.— Sim, é possível. Sou eu, o que foi Mendo de Azevedo e agora é apenas Frei João da Cruz!— Mas como?... Como?— Fui feito prisioneiro pelos mouros e resgatado por ordem do meu rei. Porém, quando já vinha perto, soube da vossa boda com D. Rodrigo. Então... julguei morrer de dor... Só o convento dominicano me recebeu e confortou! Ela continuava soluçando.— Senhor! Graças vos dou por me terdes acarinhado à hora da minha morte! Sabei vós, D. Mendo...O frade interrompeu-a:— Dizei antes Frei João da Cruz...— Pois seja. Frei João, sabei que morro feliz! A nossa consciência fica limpa perante Deus! E se o não ficar perante os homens, que o mesmo Deus lhes perdoe! Dizei-lhes, Frei João... que estou pronta!O frade limpou as lágrimas que lhe inundavam o rosto. Revoltou-se.— Não, não poderei consentir! A vossa morte é uma violência. É necessário que D. Rodrigo reconheça que estais inocente. Vou falar com ele! Ela gritou:— Não o façais! Para ele basta o meu desejo de resgatar-vos como prova de que sempre vos amei!— No pensamento nem sempre mandamos. Nos actos, sim. E de obras más estais inocente. Vou falar com D. Rodrigo! E saindo apressado, sem qualquer despedida, Frei João da Cruz foi falar com o senhor do castelo. Quando o monge pediu a D. Rodrigo o indulto de Sol, por saber da sua inocência, D. Rodrigo gracejou:— Que sabeis, padre, das mentiras das mulheres? São capazes de tudo, mesmo à hora da morte! O frade ripostou:— Senhor! Juro-vos pela cruz que trago comigo, pelas minhas vestes de frade, que ela está inocente!— E eu garanto-vos que ela é perjura! Que ela espera o homem que sempre amou para me atraiçoar! E que, para maior afronta, é português!— E eu juro-vos que isso não acontecerá!— Como o provais?— Dizendo-vos que antes de ser Frei João da Cruz fui D. Mendo de Azevedo. D. Rodrigo empalideceu de raiva e de surpresa. Exclamou:— Como? Pois ela... ela viu-vos… ouviu-vos a sós?... Estiveram ambos… a rirem-se de mim?...— Senhor, respeitai o meu hábito!
  — Vou demonstrar-vos o meu respeito! E sacando da espada correu para o frade que tirou debaixo das vestes também outra espada e lutaram longamente até frei João ferir mortalmente D. Rodrigo. Em seguida frei João da Cruz desceu ao cárcere, tirou as correntes à sua bela amada, saíram do castelo e foram muito felizes".   
 
  Abilio Conde Peso Minho Portugal